As amizades em tempos de ameaça fascista

Assim como laços familiares, a polarização colocou amizades em xeque — assim como as relações opressivas. Mas também reduziu afetos a alianças políticas. Como construir laços que, mais que nos espelhar, sejam experiências transformadoras?

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Há alguns anos, os vínculos familiares perderam sua imunidade diplomática e se tornaram objeto de questionamentos que até então não os alcançavam. Esses vínculos foram deslocados para o centro de debate principalmente por motivações políticas. Pais bolsonaristas passaram a agredir seus filhos por conta de suas convicções políticas, tios iniciavam brigas intermináveis nos encontros de família procurando impor seu posicionamento político, irmãos lotavam os grupos de WhatsApp com fake news favoráveis aos seus valores. Para evitar a dissolução de sua sagrada instituição, muitas famílias impuseram o silêncio: política tornou-se tabu. Quando não foi possível estabelecer uma lei draconiana dessa natureza, a resposta encontrada pelos mais vulneráveis foi o rompimento, parcial ou total, dos vínculos familiares.

Os vínculos familiares não foram os únicos submetidos ao questionamento, mas os vínculos de amizade também se sentaram no banco dos réus. Um certo ponto de vista crítico tornou possível diagnosticar que muitas amizades eram orientadas por valores patriarcais, racistas e misóginos. Dito de outra maneira: aquilo que se nomeava como amizade era na verdade sua instrumentalização com o objetivo de preservar uma ordem social que reiterava a expressão de velhas formas de vida ou impedia a expressão de novas formas de vida.

Em situações em que as velhas formas de vida entram em crise, podia-se perceber que os vínculos de amizade rapidamente se articulavam para preservá-las, mesmo que esse rearranjo prejudicasse inclusive amigos desses mesmos vínculos. Amigas mulheres, amigos pretos, amigos gays, amigues, amigos esquerdistas… enfim, todos aqueles amigos que representassem algum perigo a velhas formas de vida – como a exclusividade do casamento heterossexual, a reserva de cargos de chefia aos homens e a manutenção de valores meritocráticos – podiam não se ver contemplados pelos vínculos de amizade dos quais eles mesmos faziam parte.

A reação a esse arranjo dos vínculos de amizade não se fez esperar. Sob a inspiração da resistência política, muitos procuraram se (re)aproximar daqueles que comungavam dos mesmos ideais, como o antifascismo, a crítica ao capitalismo, o feminismo e a luta antirracista. Nesse processo, esperava-se mostrar que a amizade não precisa estar necessariamente a serviço da manutenção de privilégios sociais, mas que também pode estar orientada à resistência, à comunhão de opiniões políticas e à ampliação de direitos sociais.

A formação de vínculos de amizade sob outros valores tornou possível desvincular a amizade da conservação de velhas formas de vida, mas também a aproximou daquilo que é chamado de aliança política – ou, melhor dizendo, tornou mais claro que muitas vezes não sabemos quando termina a amizade e quanto começa a aliança política. A aliança política é um acordo ou um pacto, nem sempre explícito, que visa a realização de um fim político. Com a realização desse fim, a aliança pode ser renovada ou desfeita, abrindo espaço para a formação de novas alianças. É verdade que uma aliança política é permeável aos afetos e que sua efetivação pode gerar vínculos de amizade mais ou menos duradouros, mas isso pode nos levar a alguns questionamentos sobre a natureza da amizade submetida a uma aliança política.

De modo rigoroso, quando está submetida ou quando é um subproduto de uma aliança política, uma amizade possui obsolescência programada: terminada a aliança, desfeita a amizade. Mas as vivências no mundo da vida nem sempre são assim tão rigorosas, o que não impede que possa haver algum tipo de mal-estar. Com a subordinação da amizade a uma aliança política, busca-se uma garantia de que aquele vínculo possa atender ou satisfazer aos nossos interesses políticos previamente definidos. Essa “garantia” nos traz não somente uma sensação de segurança, mas também uma sensação de estarmos junto daqueles que consideramos nossa imagem e semelhança. Estamos entre nossos iguais, não somente do ponto de vista político, mas também do ponto de vista de nossa imagem.

O mal-estar pode aparecer quando os ideais políticos que orientavam esse vínculo de amizade são rompidos ou transgredidos. Dependendo da gravidade dessa quebra de pacto, a amizade pode chegar ao fim. Provavelmente, você deve ter imaginado aquela situação em que um dos dois amigos “se tornou” fascista e perseguidor de comunista. Mas essa é uma situação muito fácil de se lidar. O problema começa, no entanto, quando a amizade põe à prova os próprios ideais que a orientavam; quando surge no seio da amizade um afeto, um evento ou um estranho que contraria a aliança política justamente pelo fato de a aliança política não ter previsto esse imprevisto. Dito de outra maneira: o que acontece quando a amizade impulsiona a quebra da aliança política ao demonstrar que essa mesma aliança, que deveria “garantir” a segurança dos envolvidos contra o retorno de velhas formas de vida, que deveria impedir que o estranho pudesse se aproximar, se tornou caduca, se tornou velha?

Não, não estamos preparados para isso. Se fomos capazes de indagar a instrumentalização da amizade pelo patriarcado e pelo racismo e de submeter a amizade a novas orientações políticas, parece que não evitamos supor que possa surgir do interior da própria amizade aquilo que contraria nossa imagem mais bem-acabada de nossos ideais políticos. Desconsideramos que a amizade pode possuir uma força explosiva que nos leve a questionar nossas alianças políticas, que nos leve a questionar o que considerávamos tão certo, que nos leve a experiências políticas mais amplas e mais potentes. Justamente por isso uma amizade pode ser sufocada. Na fidelidade canina que se mantém com sua própria imagem e com a imagem que se quer mostrar ao outro, pode residir a vigilância contra um potencial transformador fruto de uma amizade. Não deixa de ser uma submissão da amizade à aliança política, mas também à imagem de si mesmo.

A amizade pode exigir coragem. Coragem para marcar um encontro no desabrigo e no desamparo. E se é necessário coragem para iniciar uma amizade, também é necessário coragem para saber o momento de encerrar uma amizade, não para buscar novamente a imagem de si mesmo refletida no espelho do outro, e sim para se aventurar em uma experiência transformadora, mas não menos interessante.

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